
Em Palermo, um jovem siciliano despede-se da família e dos amigos de forma solene, com longos abraços e visível emoção. Está prestes a embarcar numa longa viagem, rumo ao Extremo Oriente. Desconhece-se a razão de tamanha iniciativa aventureira. Mas sabe-se que o destino final da viagem é Macau, local onde conhecerá a sua futura mulher: uma senhora Macaense com quem se casa na igreja da Sé. Desse casamento resultam onze filhos, todos eles baptizados com nome português. Foi em 1839.
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“Daqui para a frente a nossa vida será diferente. O nosso futuro é incerto. Vocês têm de estar preparados para uma vida fora de Macau.” Essa retórica foi servida à mesa de jantar por um pai aos seus filhos. Foi em 1987.
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O rádio-táxi amarelo saiu do condomínio. O jovem passageiro olhou para o seu prédio e pensou: “Boa vida. Não me vou esquecer, vou ter saudades.” Tinha concluído os exames de admissão à faculdade e, com as malas já feitas, queimava os últimos cartuchos em Macau. Foi em 1995.
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“Sobra muito mês no fim do dinheiro!..”, desabafou o recém-licenciado. Tudo isto quando um senhor na televisão proferia assertivamente: “Os senhores deixaram Portugal de tanga!”. Foi em 2002.
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Caríssimo leitor, imagine-se a ver uma curta-metragem com as quatro cenas introdutórias acima descritas. Tente visualizar, porque a seguir vamos entrar no corpo do filme propriamente dito.

Estamos no futuro, no ano de 2022. O mundo foi assolado por uma pandemia.
O filme não mostra ao certo como tudo começou – esse detalhe inútil foi posto de parte. Não obstante, algumas potências mundiais prontificam-se a culpabilizar países rivais, num enquadramento geopolítico distante da unipolaridade de outrora.
Assiste-se a um complicado jogo de verdades e mentiras fundamentadas não se sabe bem por quê, em concreto. Entre a sopa de morcego, um mercado de comida numa cidade populosa, ou até a catastrófica fuga de um vírus maléfico artificialmente criado num laboratório – o espectador fica sem saber o que, realmente, se passou.
O que se sabe é que as pessoas foram instruídas a permanecer em casa e habituaram-se a seguir roboticamente uma série de medidas anti-epidémicas que passaram a fazer parte do quotidiano. Apesar do cansaço visível nas suas faces, ainda que sempre escondidas por detrás de máscaras cirúrgicas.
Este é um filme distópico de ficção científica e, por isso, destaque é dado à utilização da tecnologia. Como é o caso do acesso aos espaços públicos, sujeito à demonstração de um código digital gerado pelo telemóvel.
À semelhança de um semáforo, o código tem três cores que são determinadas por critérios absolutos definidos por um sistema que não aceita excepções e evidencia, por vezes, a origem sócio-económica do seu portador. E, inevitavelmente, também as assimetrias sociais.
Mas isso pouco interessa.
O protagonista do filme, um sujeito português nascido em Macau, entra então em cena.
Nesse primeiro plano, vê-se em pormenor a remoção de um pau de cotonete do seu nariz, entretanto mergulhado numa solução aquosa contida por uma pequena proveta de plástico. Vislumbra-se um pequeno objecto que é fotografado pelo telemóvel cujo ecrã, logo a seguir, apresenta um ícone verde.
Concluída essa misteriosa tarefa, o protagonista olha para o relógio, dirige-se para um quarto onde se senta diante do computador e reúne em teleconferência com colegas de trabalho.
Entretanto a reunião termina e despede-se dos colegas. Desliga tudo, levanta-se e aproxima-se da janela, com um suspiro. Ao contrário dos visuais sombrios neo-noir frequentes em filmes deste género, aqui encontramos um glorioso dia de sol. Do exterior sente-se, no entanto, um silêncio ensurdecedor, silêncio este que invade o interior minimalista do apartamento.
A cena é interrompida por uma mensagem que o protagonista recebe no telemóvel. É o seu amigo Esloveno. Igual a tantos outros, também este decidiu deixar Macau, cidade onde a família se multiplicou e foi feliz.
“10 years of Macau and this is it”. Foi essa a mensagem que recebeu do seu amigo Esloveno, acompanhado de uma foto onde se vêem caixotes e malas ao lado de brinquedos abandonados.
Com um visível incómodo no seu olhar, o protagonista responde à mensagem: “Good to know you are ready to go… Btw, how to fit 6 generations of Macau in a container?..”
Não que tivesse planos para deixar Macau. Foi aqui que nasceu. Foi aqui que os seus antepassados nasceram. Foi também aqui que os seus filhos nasceram.
“Sabes… Em cada esquina desta cidade, tenho uma história para te contar… Esta é a minha terra e não quero ir para mais lado nenhum.”, disse um dia à sua companheira ao reconhecer a sapataria onde, quando adolescente, fez cair todas as sapatilhas que enchiam as prateleiras duma parede.
Em início de carreira, encontrou em Macau oportunidades que dificilmente encontraria noutro lugar. Poder desenvolver a carreira profissional na sua própria terra – quantas pessoas no mundo têm esse privilégio?
Sempre assim pensou, sobretudo porque nada disso era suposto acontecer. Não foi assim que lhe ensinaram quando miúdo. Estava previsto um futuro fora de Macau.
“Como enfiar 6 gerações de Macau num contentor…” – esse pensamento ficou-lhe na cabeça. “E quantos metros cúbicos ocupam as memórias?..”
Já vinha de trás. Nos últimos meses, viu o seu círculo de amigos reduzir-se. E a conversa do contentor tornou-se lugar comum.
Ocupado com esses pensamentos, olhou para um canto da sala e imaginou a sua filha a divertir-se com os brinquedos, juntamente com as amigas do prédio.
“Esta casa já viveu momentos mais animados.”, lamentou. Costumavam juntar-se aos Domingos. Entretanto, claro, também as amigas do prédio deixaram Macau.
“Também sofrem…”.
Foi neste estado melancólico que se deixou adormecer no sofá.

“Estás a acompanhar isto?” perguntou a companheira do protagonista, sem tirar os olhos do telemóvel. Tinha acabado de chegar a casa, trazendo consigo um saco cheio de máscaras cirúrgicas e embalagens médicas .
Acabado de acordar e ainda a bocejar, o protagonista olha para o telemóvel dela e encolhe os ombros: “Sim e não…“.
O “isto” dizia respeito a um artigo flamejante de primeira página sobre os portugueses que deixaram Macau, despoletando rapidamente uma acesa discussão nas redes sociais.
“Na verdade, não li o artigo.”, acrescentou o protagonista. “Não me apetece e também não quero fazer parte dessa discussão. De resto… Quem sou eu para julgar as decisões pessoais de cada um?..”.
Na ausência de uma reacção, decide então continuar: “Hão-de voltar, quando isto tudo acabar… E não digo isto para lhes poder atirar na cara que fizeram mal em ir-se embora daqui… Digo isto porque quero muito que voltem.”
Lembrou-se da expressão “Eles vêm e vão, nós ficamos.” que tantas vezes ouviu no passado. “São ciclos, Macau vive de ciclos.”
Mas também não lhe saem da cabeça as recentes declarações da sua amiga na televisão, que rapidamente se tornou viral, na sequência do cancelamento de mais um evento público: “Em 40 anos de Macau, nunca vivi um período tão desmotivante como este.”
Larga então um suspiro de ansiedade, de impaciência, de desânimo e também de cansaço. Não tem sido fácil. Mas não quer mergulhar, uma vez mais, nessa espiral negativa. Decide então colocar um fim a esses pensamentos depressivos que o têm assombrado diariamente.
”Olha, o que há no Netflix?..”

“Encontrei, está aqui! Sabia que havia ainda um exemplar!” exclamou o funcionário da Livraria Portuguesa, segurando triunfantemente num “Glossário de Patuá” empoeirado, com ar de usado.
“Óptimo, que bom! Vou já levar!” respondeu o protagonista, que prontamente acedeu à aplicação de pagamento electrónico no seu telemóvel. Estava com pressa porque tinha o carro parado à porta da livraria, com os filhos à espera. O mais velho não escondeu a excitação ao ver o pai com o livro na mão.
“Deixa-me ver, deixa-me ver!”
Folheando o livro com entusiasmo, o miúdo começou a ler em voz alta as expressões peculiares que encontrava. “Pai, és um chuchumeco! Haha!.. Olha, tem chupâ ovo também!..”
Deliciado com a reacção do filho enquanto o carro seguia pelas Mariazinhas, o protagonista reparou que a rua, sempre movimentada no passado, encontrava-se ora mais vazia como nunca.
Mas o que lhe chamou a atenção não foi este vazio que há muito deixara de ser novidade. Com o vazio, reparou que neste final de tarde de Julho as sombras projectadas no chão, limpo e alaranjado da luz do sol, pareciam anormalmente longas.
“Persistência da Memória… Senhor Dalí, estou muito bem, obrigado! Por favor, não faça pouco de mim!”, pensou a brincar.
“Mas olhe que não, olhe que não! Não rejeite logo à partida, veja bem!..”, respondeu Dalí.
E é neste preciso momento que o filho fala, interrompendo assim o diálogo macabro que escorregava não se sabe bem para onde.
“Pai, sabes?.. Gosto muito de Macau… Não sei… A nossa cultura, o Patuá, a comida, essas coisas… Os meus amigos… Falamos inglês, chinês e português.. Acho que é muito especial. Só quero viver aqui…”
“Sim, claro…”, respondeu o protagonista de forma inconsequente, sem dar seguimento à conversa.
Não por falta de interesse ou por falta de sensibilidade que o impedisse de perceber a importância que tal comentário tinha para o seu filho.
E muito menos por ser incapaz de reconhecer a pureza, simplicidade e sinceridade do mesmo, apenas possível dada a sua tenra idade e a ausência de uma mente inquinada como a sua.
Mas simplesmente por não saber ao certo como reagir perante tal comentário, com receio de poder vir a defraudar quaisquer expectativas legítimas que pudesse vir a ter quanto ao futuro de tudo e de todos.
Porque ainda que as coisas tenham na generalidade corrido bem para a sua geração, que considerava já aviada e talvez até no crepúsculo, como sempre – e como sempre porque conforme as sábias palavras do já falecido amigo de família “Macau sempre foi, e sempre será, uma terra emprestada.” – a sua preocupação prendia-se agora com a próxima geração.
Isto numa altura em que, reconhecidamente, vê uma progressiva perda de relevância da sua comunidade na sociedade e nos assuntos locais. Aliás, algo que sempre previu, pois se no passado se fizeram valer não necessariamente pela presença no mundo empresarial, mas pela proximidade de um poder político que entretanto deixou de o ser – que lhes resta, afinal, verdadeiramente?
“Ora, apenas um chonto di gente que insiste em actuar num palco com os holofotes já apagados…”
Decide então que chegou a altura de ter uma conversa com os filhos sobre futuro, para se mentalizarem e se prepararem na eventualidade de…
Sim, na eventualidade de.
E pareceu-lhe conveniente ter essa conversa à mesa de jantar.
“Meninos, estão com fome? Que tal irmos jantar ao Litoral?”

Na cena seguinte, filmada por um drone, vê-se então o carro a circular pela Av. Dr. Sun Yat Sen em direcção à Barra, marcando presença ao fundo a silhueta dos arranha-céus em Shizimen contra a imensidão de um céu azul, roxo e cor-de-rosa do pôr-do-sol.
Entretanto o carro abranda por causa de um pequeno engarrafamento – uma raridade nesses dias de pouquíssimo trânsito.
O engarrafamento deve-se a um acidente poucos metros adiante, junto da Ponte de Sai Van. O protagonista apercebe-se, então, que os carros são desviados para dois possíveis percursos: pela marginal, passando pelo monumento da Porta do Entendimento; ou então por uma via interior, passando pelo monumento da Diáspora Macaense.
E fica pensativo, porque não sabe bem para que lado deve ir.
Por uns breves segundos, o espectador fica com a ideia de que a imagem parou. Ou talvez não. O que é certo é que subitamente o som ambiente desapareceu e a cena é invadida por um silêncio absoluto que parece durar uma eternidade. Até que se nota no protagonista um subtil encolher de ombros, acompanhado de um sorriso.
É tudo irrelevante. Macau é pequeno e, qualquer que seja o percurso, vamos sempre parar ao nosso destino – pensou.
Dá novamente entrada o plano do drone, que lentamente ganha altura e se distancia do carro, cada vez mais pequeno, até se verem apenas as luzes de cor vermelha dos faróis traseiros da fila de automóveis parados.
E assim termina o filme, com a imagem a entrar em fade-out quando, simultaneamente, ganha volume uma transmissão de rádio, em chinês e em português, sobre o estado do tempo na RAEM num dia banal de 2049.
